UM JESUS FANTASMA?
Sermão do 3º. Domingo da Páscoa – Ano B
domingo, 15 de abril
de 2018
Jesus
aparece aos discípulos
Mt 28.16-20; Mc 16.14-18; Jo 20.19-23; At
1.6-8
36 Falavam eles ainda estas coisas
quando Jesus apareceu no meio deles e lhes disse:
— Que a paz esteja com vocês!
37 Eles, porém, ficaram assustados
e com medo, pensando que estavam vendo um espírito. 38 Mas
ele lhes disse:
— Por que vocês estão assustados? E por que surgem dúvidas no
coração de vocês? 39 Vejam as minhas mãos e os meus
pés, que sou eu mesmo. Toquem em mim e
vejam que é verdade, porque um espírito não tem carne nem ossos, como vocês
estão vendo que eu tenho.
40 Dizendo
isto, mostrou-lhes as mãos e os pés. 41 E,
por não acreditarem eles ainda, por causa da alegria, e como estavam admirados,
Jesus lhes disse:
— Vocês têm aqui alguma coisa para comer?
42 Então
lhe apresentaram um pedaço de peixe assado, 43 e
ele comeu na presença deles.
44 A
seguir, Jesus lhes disse:
— São estas as palavras que eu lhes falei, estando ainda com
vocês: era necessário que se cumprisse tudo o que está escrito a respeito de
mim na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos.
45 Então
lhes abriu o entendimento para compreenderem as Escrituras. 46 E
disse-lhes:
— Assim está escrito que o
Cristo tinha de sofrer, ressuscitar dentre os mortos no
terceiro dia, 47 e
que em seu nome se pregasse arrependimento para remissão de pecados a todas as
nações, começando em Jerusalém. 48 Vocês
são testemunhas destas coisas.
A
leitura do Evangelho deste domingo descreve a mesma cena da leitura do domingo
passado, narrada por João 20 os discípulos reunidos em uma sala fechada são
repentinamente visitados pelo Senhor Jesus, que aparece no meio deles de forma
inexplicável, extraordinária.
Diante
da reação dos discípulos, Jesus esclarece que não é um espírito desencarnado,
nem um fantasma, uma alma sem corpo.
Mostra as marcas da crucificação em sua pele, e se alimenta na frente
deles.
Depois
disso, lembra aos discípulos trechos do Antigo Testamento que falavam dos
sofrimentos e da morte do Messias como condições necessárias para a sua
vitória. Conclui seu discurso com uma palavra de envio dos discípulos, como
testemunhas de todos esses acontecimentos.
Podemos
ler esse texto de três formas: uma
leitura litúrgica, uma leitura teológica e finalmente uma leitura prática.
A
leitura litúrgica é aquela na qual nos enxergamos na estrutura do texto algo
semelhante á estrutura do nosso culto. Ou seja: se nós prestarmos atenção à
sequência dos gestos de Jesus e dos discípulos no texto de Lucas, poderemos
perceber uma sequência de coisas que nós praticamos em nossas igrejas em nossas
celebrações.
Assim,
temos primeiro os discípulos reunidos.
Depois, Jesus aparece misteriosamente no meio deles e os saúda com a paz. A reação dos discípulos é uma reação
emocionada, uma mistura de temor e de alegria.
Diante dessa reação, Jesus chama a atenção dos discípulos por causa das
dúvidas que eles têm em seus corações.
Então vem o momento da refeição e, logo após, uma exposição das
Escrituras apresentada pelo próprio Jesus.
Terminada essa exposição, Jesus envia os seus discípulos como
testemunhas do que havia acontecido.
Vejamos,
então a sequência, dentro do nosso culto:
Os
discípulos reunidos e Jesus no meio deles com a saudação da paz: é o momento de
Acolhida e saudação;
·
A reação maravilhada
dos discípulos na presença de Jesus: é a Adoração;
·
A exortação de Jesus
diante das dúvidas dos discípulos: é o momento de confissão;
·
O momento da
refeição: é a Eucaristia;
·
A exposição da
Palavra de Deus: é a homilia;
·
E no final temos o
envio para o mundo.
Há
dezenas de trechos iguais a esse na palavra de Deus que nos remetem a uma ordem
de culto, a uma liturgia, que serve de modelo para nossas celebrações.
O
evangelho de hoje, também, nos remete a uma leitura teológica. Claro que,
quando pregamos um texto da Bíblia procuramos interpretá-lo à luz da teologia.
Contudo,
temos um versículo que é muito importante, e que aparece em Lucas e em João. É
aquele em que Jesus afirma sua ressurreição corporal. As marcas da crucificação ainda estão
presentes nas suas mãos, nos pés e no tronco.
Ele pede comida e faz uma refeição na frente dos discípulos. Tudo isso mostra que Jesus não se tornou um
espírito desencarnado.
Na
realidade, Jesus se tornou para sempre humano. Ele assume um outro corpo,
diferente deste que nós temos, mas mantém suas características de ser humano.
Isso é importantíssimo para a teologia, porque um dos primeiros assuntos a ser
discutido pela Igreja Antiga foi a natureza de Cristo. Se ele era só humano, só divino/espiritual,
se era Deus, se era Filho de Deus, etc. Somente no quarto século foi que o concílio
de Niceia bateu o martelo sobre a questão e concluiu pela dupla natureza de
Jesus Cristo: humana e divina.
Se
Jesus fosse considerado apenas humano, isso levaria a igreja a acreditar que
qualquer pessoa mais virtuosa e dedicada poderia se tornar igual a ele, pelos
seus próprios méritos; se ele fosse considerado só divino, então teríamos um
Jesus que nunca experimentou a dor e a delícia de ser humano, nossos prazeres e
nossos sofrimentos, e que não se esvaziou de sua natureza divina na cruz. O sacrifício de Jesus seria apenas uma
encenação.
Faz
muita diferença saber que Jesus é humano também, além de divino.
O
texto de Lucas nos diz que os discípulos achavam que estavam vendo um
espírito. Tem uma versão em grego que
usa a palavra fantasma. Isso me chamou
muita atenção, por uma razão muito simples: até hoje muitos cristãos depositam
sua fé em um Jesus exclusivamente espiritual.
Claro
que Jesus é um ser espiritual, mas quando eu reduzo Jesus apenas a essa
dimensão espiritual, isso me faz limitar Jesus à minha vida espiritual. Jesus passa a ser, então, um ser sobrenatural
a quem eu recorro para resolver questões e desafios apenas de natureza
espiritual. É para isso que Jesus serve na minha vida, como um amuleto de
proteção contra o olho gordo, contra o encosto, contra mandinga, contra as
forças mágicas do mal. É uma força protetora que me dá livramento e proteção. É esse Jesus que nós vemos anunciado na
televisão.
Hoje,
no Rio de Janeiro, acontece um fenômeno religioso muito preocupante. Existem
chefes do narcotráfico que têm origem em famílias evangélicas e são
traficantes. Espiritualmente, têm uma
boa relação com Jesus e têm até pastores que lhes dão assistência. Como evangélicos, não permitem que na sua
área existam terreiros de cultos afro.
Mandam homens armados expulsar os pais e mães de santo, e proíbem que os
moradores usem colares ou andem vestidos de branco. Para eles, Jesus é uma
grande referência espiritual, e pronto.
Nada mais do que isso. Como eles vivem a vida deles, isso não é assunto
para Jesus.
Existe
um problema muito sério nisso tudo.
Jesus ordenou a seus discípulos que ensinassem tudo que ele havia
ordenado. Que ensinos eram esses? Não é
difícil lembrar: amar o próximo como a si mesmo; não discriminar as pessoas por nenhum
critério; defender os perseguidos pela sociedade, como os publicanos – que
coletavam impostos para os romanos – e como mulher adúltera, condenada à morte.
Recentemente tive uma discussão com um irmão no Facebook porque dei a entender
que Jesus defendia bandidos. Ele me
contestou com palavras duras, dizendo que era uma falta de respeito com Jesus
fazer tal afirmação. Eu lhe respondi com
esses dois exemplos: dos publicanos e da mulher adúltera. Isso, sem falar no
ladrão que foi crucificado ao seu lado, que ele prometeu que estaria no
paraíso. Se isso não é defender bandido,
o que é então? Foram esses ensinos e essa prática de Jesus que o levaram para a
cruz. Um pensamento que contrariava o senso comum, o pensamento predominante de
sua época e de sua cultura.
Por
muitos séculos tivemos um mundo onde os cristãos – considerados pessoas de bem
– tinham uma vida espiritual impecável,
e eram senhores de escravos, que eram torturados e considerados como animais
amaldiçoados. Tudo isso justificado com
citações bíblicas. Então, o Jesus em quem essas pessoas acreditavam era um ser
exclusivamente espiritual, que não tinha maiores consequências para as outras
áreas da vida. até que um dia surgiram cristãos que pensavam diferente dessa
realidade.
Um
Jesus de carne e osso sabe o que é o sofrimento humano e se solidariza com
aqueles que sofrem. Por isso mesmo, é fundamental que a nossa fé em Jesus tenha
sentido em todas as áreas da nossa vida: no convívio familiar (área muito
difícil); no trabalho, o cristão deve testemunhar com um bom profissional, como
um estudante dedicado, como um bom vizinho, como uma pessoa atenta aos
necessitados de toda ordem. e, como cidadão, o cristão é chamado a
permanentemente questionar aqueles que dominam a sociedade, exigindo que
prestem contas do que têm feito.
Na
época em que estamos vivendo é preciso estar atentos à nossa atitude enquanto
cristãos. Saber se o que nós queremos é simplesmente uma pureza espiritual, ou
se nós estamos dispostos a uma caminhada solidária com aqueles que a sociedade
rejeita e condena, muitas vezes com a bênção daqueles que se apresentam como
servos de Jesus Cristo.
Então
saberemos se o nosso Cristo é aquele que teve mãos e pés perfurados pelos
cravos da cruz, ou se não passa de um simpático fantasma.
Rev. Daniel do Amaral
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